Foto: Marinha do Brasil
A Corrente do Brasil, que começa na altura do estado da Bahia, na cadeia submarina Vitória-Trindade, permeia praticamente toda a costa do centro-sul do País até o Rio Grande do Sul, quando se afasta da costa e flui à confluência com as Malvinas, é monitorada pelo Brasil no trecho entre o estado do Rio de Janeiro e a Ilha de Trindade.
A distância de cerca de 1,2 mil km entre o continente e a ilha oceânica é denominada de rota AX97. Percorrida de navio, são aproximadamente quatro dias. O monitoramento iniciou em 2004 pelo projeto MOVAR, acrônimo para Monitoramento da Variabilidade Regional do transporte de calor e volume na camada superficial do oceano Atlântico Sul.
A iniciativa coordenada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e financiada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) é o mais longo esforço de monitoramento continuado da Corrente do Brasil a partir de plataformas embarcadas. Até 2022, já foram realizadas 86 comissões oceanográficas e lançadas pouco mais de 4 mil sondas. A equipe é responsável por coletar informações primárias para melhorar a compreensão sobre a corrente de contorno oeste do Atlântico (a partir da perspectiva do oceano) e, a partir da consistência dos dados, aprimorar os modelos utilizados para previsões sobre as correntezas marítimas.
“Hoje estimamos essa corrente de modo muito melhor do que fazíamos no início [do projeto]. Utilizamos os dados para validar modelos de curto prazo, que envolvem previsões de até 15 dias, e os modelos do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima], que consideram o período histórico”, detalha o coordenador do MOVAR e professor do Instituto de Geociências da UFRJ, Mauro Cirano.
A periodicidade e manutenção da mesma trajetória do navio são fundamentais para a coleta de dados oceanográficos do projeto. As embarcações da Marinha fazem a rota periodicamente para abastecer o Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade. Em aproveitamento, os pesquisadores embarcam seis vezes ao ano para lançar ao mar sondas, do tipo XBT Deep Blue, que medem a temperatura da superfície do oceano. A cada viagem, são lançadas 48 sondas para registrar o perfil de temperatura. Sempre no trecho de ida.
Esse é o parâmetro primário utilizado pelos pesquisadores para calcular a intensidade da corrente, ou seja, a velocidade. Isso ocorre porque a densidade do mar considera os fatores salinidade, temperatura e pressão. O parâmetro que mais varia no oceano em latitudes tropicais é a temperatura. Como base nela, os pesquisadores estimam a salinidade. Tendo temperatura e salinidade, conseguem calcular a densidade e, por consequência, obtém a velocidade da corrente.
“Estamos sempre revendo para estimar da melhor forma”, afirma Cirano. O professor explica que, além disso, a Corrente do Brasil transporta muito calor ao longo da costa. Outro aspecto considerado nas avaliações.
O sensor do modelo utilizado, que é descartável, permite aferir quantos graus está a água do oceano em até 2 mil metros de profundidade. Uma sonda é jogada ao mar a cada duas horas, em média. No caminho, entre 200 e 2 mil metros de profundidade, a cada 10 milhas náuticas (cerca de 18,5 km). Até chegar em Trindade, a distância pode aumentar para 15 milhas náuticas (cerca de 27,7km). “Aumentamos amostragem em regiões onde a corrente é mais intensa”, explica Cirano. Esses parâmetros globais são definidos em uma comunidade técnica denominada XBT Science Team, a qual o professor integra.
É uma sonda relativamente simples e de tamanho similar a uma garrafa de refrigerante de 250ml. O sensor de temperatura está preso a um cabo de cobre enrolado em um carretel, que se rompe ao atingir 800 metros de profundidade. Cada equipamento custa em torno de U$100, o que é considerado de baixo custo para os parâmetros oceanográficos. O projeto brasileiro recebe as sondas da Agência Nacional de Oceano e Atmosfera dos Estados Unidos (NOAA), parceira do projeto e que também recebe os dados coletados praticamente em tempo real. Esses dados são utilizados para as previsões de sistemas oceânicos, acessados por usuários do setor de todo o mundo.
“Utilizamos esses dados de temperatura para corrigir os modelos de previsão de correntes dos oceanos, que chamamos de assimilação de dados”, explica Cirano. “Qualquer coisa que estiver à deriva na superfície do oceano estará ao sabor das correntes. O derrame de óleo que ocorreu há dois anos, por exemplo, precisou de modelos realistas, bem ajustados para fazer uma previsão das correntes”, complementa, exemplificando a utilização direta dos dados.
Os dados servem de base para inúmeras utilizações práticas. De acordo com Cirano, podem ser utilizadas para otimização das rotas de navegação e também para o melhor dimensionamento das estruturas das plataformas de petróleo em alto mar, que, em geral, são hiperdimensionadas como estabelece a engenharia, para ambientes pouco conhecidos.
As informações primárias sobre temperatura também buscam responder um questionamento científico atual: em um cenário de mudanças climáticas, a Corrente do Brasil será mais intensa ou menos intensa? Quando se fala em corrente marítima, intensidade quer dizer velocidade. Esse parâmetro tem várias implicações, entre elas, a inclinação do oceano. Se a velocidade da corrente média diminuir, a inclinação pode variar e elevar o nível do mar na costa. “Se a corrente desintensificar em média, o nível [do mar] sobe em média em alguns centímetros”, explica Cirano sobre as correlações entre a velocidade da Corrente e a possibilidade de elevação do oceano na costa brasileira.
Treinamento e parcerias – O projeto permitiu que ao longo de quase duas décadas cerca de 100 novos pesquisadores, em sua maioria oceanógrafos, realizassem treinamento a bordo de navios. Os alunos de oceanografia da UERJ e da FURG utilizam o programa para cumprir com parte das horas de embarque exigidas pelo curso.
Além do MCTI, o projeto conta com apoio de diversas instituições, como o Centro de Hidrografia da Marinha (CHM), a National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), a Universidade Federal do Rio Grande (FURG), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Secretaria da Comissão Interministerial para Recursos do Mar (SECIRM).
O projeto também integra o Sistema Global de Observação do Oceano (GOOS), liderado pela Comissão Intergovernamental Oceanográfica da Unesco, que monitora rotas ao redor do globo para prover informações mais precisas sobre o oceano, e um dos poucos projetos inseridos no CoastPredict, um dos programas mundiais endossados pela Década da Ciência Oceânica.